Eu normalmente venho aqui trazer orientações e tirar dúvidas, mas hoje trago um texto mais opinativo, mais reflexivo, buscando analisar a situação dos imigrantes aqui em Portugal.
Primeiramente vamos abordar a questão do fim da manifestação de interesse. Como este tópico já foi objeto de outro texto aqui do Blog, não vou me aprofundar, mas gostaria de destacar alguns pontos.
O item da lei que abordava a manifestação de interesse foi criado para ser utilizado como exceção, por pessoas que, estando em Portugal por razões diversas, decidissem ficar.
No entanto, com o tempo muitos imigrantes transformaram a exceção em regra. E a manifestação de interesse foi utilizada por pessoas que já saíram do seu país de origem com a intenção de fixar residência, mas optaram por não requerer um visto apropriado, por acharem que isso seria mais caro ou muito trabalhoso.
A quantidade de pessoas buscando a regularização em Portugal por essa via foi tão imensa que as filas ficaram gigantescas e o tempo entre a submissão do pedido e a entrevista junto à AIMA chegava a mais de dois anos. Nesse período, o imigrante fica com um status intermediário (em regularização): não está irregular, mas também não tem um documento adequado de residência.
Para tentar dar uma solução paliativa, foi criado um documento alternativo, uma autorização de residência que tinha um número de registro e era considerado um documento de identificação, mas fora emitido sem entrevista prévia na AIMA e não era um título de residência propriamente dito (não era um documento de identificação com foto e dentro dos modelos definidos pela União Europeia).
Depois de várias contestações por parte da UE quanto às análises desses pedidos de manifestação de interesse (M.I.), especialmente no que diz respeito às emissões de autorizações de residência CPLP fora do padrão da União Europeia, Portugal optou por impedir a inserção de novos pedidos de M.I. na plataforma SAPA. Parece ter sido uma solução diante do temor de sofrer sanções pela UE.
A expectativa de advogados e imigrantes era de que, com a interrupção de novos pedidos, houvesse condições de analisar com mais agilidade os pedidos existentes, agendando os atendimentos presenciais.
Paralelamente ao fim dos novos pedidos, foram criados mecanismos para agilizar alguns casos em andamento. Criou-se um procedimento de atualização de documentos e pagamento antecipado de taxa, o que já permitiu que muitos imigrantes tivessem suas marcações realizadas, a maioria delas para o último trimestre de 2024. Com isso, o Estado arrecadou taxas antecipadamente e agendou muitas pessoas, reduzindo a ansiedade desses imigrantes e dando alguma satisfação à população.
No entanto, ainda há milhares de pessoas à espera de uma solução. As medidas adotadas ainda não foram suficientes para reduzir a fila de forma expressiva.
Evidentemente, quem vinha para Portugal e passava pela imigração fingindo que o objetivo da viagem era turismo, quando na verdade pretendia fixar residência no país, sabia os riscos que corria, inclusive o de haver demora na obtenção do título de residência. O problema é que essa demora tem ultrapassado os limites da razoabilidade e deixado muitas pessoas sem documentos por períodos muito longos.
Agora vamos nos debruçar sobre outro ponto complicado: a questão das vagas para entrevista de pessoas que vieram com visto. Ao obter um visto no país de origem, muitos imigrantes saem do país já com a marcação da entrevista junto à AIMA para obtenção do título de residência. No entanto, alguns vistos não vêm com essa marcação, o que obriga os imigrantes a buscarem o atendimento telefónico para obtê-la.
Teoricamente este procedimento de chegar a Portugal, ligar, agendar e ir à AIMA deveria ser algo trivial, mas não é. Há meses (muitos meses) não são abertas vagas para titulares de visto. Ou seja, mesmo quem seguiu o script direitinho e entrou no país com visto está tendo dificuldades para regularizar sua situação, requerendo o título de residência por meio da entrevista presencial na entidade.
Como se não bastassem os problemas relatados acima, ainda temos a situação da dificuldade de agendamento de atendimento para outras questões: alteração de dados, renovação de título de residência e reagrupamento familiar.
Quanto ao agendamento para alteração de dados simplesmente está quase impossível porque não há vagas para agendamento algum há vários meses. Só resta ao imigrante esperar.
No que diz respeito à renovação, a maior parte das pessoas tem conseguido fazer o procedimento online e recebido o novo documento em casa, mas aqueles que não podem utilizar esta via porque o artigo no qual se encaixam não permite renovação automática (estudantes, por exemplo) têm tido a mesma dificuldade de outros imigrantes que mencionei nos casos anteriores: não há vagas.
O reagrupamento familiar é um caso especial. Embora tenha havido a criação de uma plataforma para submissão de documentos e pagamento de taxa prévia para posterior marcação de entrevista, esta plataforma não está disponível para todos os casos de reagrupamento. Com isso, estes imigrantes passam meses à espera de vagas para marcação.
A conclusão a que chegamos ao analisar todos esses casos acima é a de que a situação do imigrante não melhorou nos últimos meses, apesar da busca de soluções para reduzir a fila de espera e regularizar a vida dessas pessoas em Portugal.
Falta um sistema mais justo e menos cansativo de marcação de atendimento dos imigrantes. Quem já precisou agendar e ficou horas na musiquinha de espera do atendimento telefônico sabe do que eu estou falando.
Faltam funcionários na AIMA para responder e-mails, atender o telefone da central de atendimento, despachar os processos de quem já foi atendido e não teve ainda o cartão enviado para emissão e, o mais importante, para atender as pessoas na linha de frente.
Os imigrantes em situação irregular ou em fase de regularização encontram dificuldades para cadastrar número de utente, não podem se ausentar do país para circular no espaço Schengen, precisam permanecer com representante fiscal junto às Finanças e não conseguem ter acesso às melhores vagas de emprego porque sequer têm documento de identificação no país.
Para tentar diminuir o caos que se instalou em Portugal neste quesito, o governo tem publicado decretos que prorrogam a validade dos documentos. O último destes decretos é o Decreto-Lei 41-A/2024, que prorroga a validade de documentos caducados até junho de 2025.
Apesar da boa intenção da legislação, ela não resolve o problema, pois os imigrantes continuam sem documento atualizado, o que gera uma série de contratempos, sendo um dos mais importantes a impossibilidade de circular em outros países da UE, já que essa legislação aplica-se apenas internamente.
Diante da situação complicada dos imigrantes e dos diversos prejuízos que a falta de documentos ocasiona, muitas pessoas têm procurado advogados para ingressar com ações perante o Tribunal Administrativo com o intuito de obrigar a AIMA a atendê-las, por excesso de prazo na regularização imigratória.
Essas ações têm tido êxito e, com isso, a AIMA tem um prazo extremamente curto para solucionar o caso do imigrante vencedor da ação. Isso sobrecarrega a AIMA e torna ainda mais difícil a disponibilização de vagas para atendimento, uma vez que elas estão sendo preenchidas para atender a esses casos.
Ou seja, a situação da imigração em Portugal está tão caótica que o caminho mais ágil tem sido o da judicialização dessas questões. E isto gera um ciclo vicioso: o imigrante não é atendido, ingressa com a ação, a ação obriga a AIMA a atendê-lo, não sobram vagas para quem está na fila, quem está na fila decide não esperar mais e ingressa com a ação e o ciclo se repete.
Todo esse cenário evidencia a desorganização das entidades envolvidas no processo e a necessidade premente de haver investimento em tecnologia e em pessoal capacitado para lidar com a situação e fazer frente às necessidades dos imigrantes.É isso que milhares de imigrantes esperam.
Portugal precisa dos imigrantes. Os imigrantes desejam ficar no país. O que falta é tratar os problemas relacionados com imigração como prioridade, oferecendo tratamento digno e ágil às pessoas que querem residir aqui e reúnem condições para isso.
Sobre a autora:
Karla Braga é brasileira, ex-bancária, advogada, professora e mora em Portugal desde junho de 2019. É fundadora da Entre Euros e Reais e presta serviços de consultoria e mentoria na área financeira, além de cursos e palestras nas áreas financeira e jurídica. A autora escreve textos sobre a vida em Portugal e sobre planejamento financeiro para mudar de país.
Veja a Karla Braga em Entre Euros e Reais Siga o Instagram Entre Euros e Reais Outros temas de Karla Braga: #1 – Como planejar mudança para Portugal #2 – Quanto custa a vida em Portugal? #3- Quero começar a investir, mas… Por onde começar? #4 – A importância de registar a sua marca #5- Formalização de negócios em Portugal #6- Caminhos para morar legalmente em Portugal #7- Caminhos para morar legalmente em Portugal – Parte 2 #8 – Perspectivas para Portugal em 2023 #9 – Autorização de Residência CPLP #10 – Por que internacionalizar seus negócios para Portugal? #11 – SEF e AIMA – O que muda na vida do imigrante? #12 – IRS 2024 #13 – Como economizar em Portugal? #14 – AIMA e IRN – como está a situação dos imigrantes em Portugal? #15 AIMA e os problemas das regularizações de imigrantes # 16 A situação dos estrangeiros em Portugal |