No texto anteriormente publicado no blog da BrasileiroSou, alertamos sobre a importância de qualificar os imigrantes para adequá-los às necessidades dos novos mercados. Neste novo ensaio, aprofundaremos o tema em torno de uma qualificação específica: a competência em negociações multiculturais. Vale salientar que a habilidade intercultural não é requisito de sucesso restrito a empresários, mas a qualquer imigrante que queira se inserir no novo contexto .
A multiculturalidade é um fenômeno que não se verifica apenas entre diferentes países, mas está relacionada a diferenças de características entre regiões mesmo dentro de um país ou região. Em preparação para uma visita a uma indústria beneficiadora de arroz, localizada em uma região árida, percebi que meu parceiro na negociação acumulava músicas consideradas “populares”. Questionei-lhe a razão de optar por aquele tipo de música, e ele me alertou que “iríamos encontrar pessoas sem muita informação, por viverem um sítio economicamente deprimido em relação às grandes cidades”. Quando lá chegamos, o gerente da indústria nos veio receber, um homem negro com deficiência física resultante de poliomielite. O parceiro me chamou de lado e disse-me: eu não falei para você? Argumentei que aquilo era puro preconceito, e que se o homem gerenciava uma empresa daquele porte, certamente tinha todas as competências necessárias. Perguntamos ao gerente como ele fazia para precificar o arroz. Ele nos levou a uma sala onde havia vários computadores monitorando os preços em diversos mercados internacionais. Meu colega então ficou calado durante todo o andamento da negociação.
Ideias pré-concebidas costumam gerar rótulos, alguns deles consagrados e tão ampliados que podem prejudicar o andamento de processos negociais. Não há uma região em que todas as pessoas sejam preguiçosas, mal-educadas, racistas ou preconceituosas, embora os contextos sociais possam realmente influenciar tais comportamentos. Se essas características fossem extrapoladas para todas as sociedades não haveria imigração para determinados países ou regiões. O negociador multicultural eficiente não se influencia pelo meio em que vive, nem por ilações sobre os países em que necessita negociar.
Há, no entanto, questões, normalmente históricas, que devem ser observadas antes de se iniciar uma negociação. Há uma falácia ainda existente de que, para ser um bom negociador, basta falar inglês. Uma vez recebemos, em uma das empresas em que trabalhei, uma delegação da província Quebec, no Canadá. Uma parceira assumiu as rédeas da negociação falando em inglês, mas foi rapidamente interrompida por um dos membros da comitiva visitante, que lhe disse: se quiser seguir a negociação, fale no seu ou no nosso idioma, não em um terceiro. Como já falava francês na oportunidade, busquei contornar o problema, traduzindo para a minha equipe o que a equipe visitante falava.
Esses problemas poderiam ter sido reduzidos pelo que denomino em meus cursos de Negociação Intercultural como “microcultura”. Embora muitas percepções sejam realizadas nas relações pessoais, o conhecimento prévio das condições históricas, sociais, econômicas e ambientais fortalece as competências dos negociadores. Apropriando-me aqui de uma frase atribuída ao filósofo Sêneca, ressalto que “sorte é o que acontece quando a preparação encontra a oportunidade”.
Em relação aos que comigo partilham a condição de imigrantes em Portugal, ressalto a necessidade de que desenvolvam, antes ou depois que aqui chegarem, competências para se qualificarem como “negociadores interculturais”, transmitindo e absorvendo novos conhecimentos, sem ideias pré-concebidas. Ouvimos muitas pessoas dizerem que alguém “deu sorte quando chegou por aqui, quando o contexto era outro”. Na verdade, as pessoas que “dão sorte” sempre estão preparadas para o quotidiano, que é na verdade uma sequência de negociações interculturais ou intergeracionais.
Laércio de Matos Ferreira
Laércio de Matos Ferreira, sócio-fundador da Associação Portuando, é investigador, em nível de pós-doutoramento, na área de Inovação Territorial junto à Universidade de Aveiro. Possui doutorado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestrado em Gestão pela Universidade Estadual do Ceará. É mentor associado à BrasileiroSou, além da Rede MentAll, da Universidade de Aveiro.
Veja quem é Laércio de Matos Ferreira Segue a Associação Portuando Outros Temas de Laércio de Matos Ferreira: #1 Todo empreendedor é inovador? #2 No novo paradigma digital os professores serão também mentores de negócios? #3 Afinal, nós falamos brasileiro ou português do Brasil? #4 A importância da informação no processo negocial #5 As relações de poder na negociação #6 Um dia sem brasileiros em Portugal #7 De hipopótamos a protozoários #8 Reflexões sobre a criação de um programa de microcrédito orientado para imigrantes #9 Reflexões sobre a criação de um programa de microcrédito orientado para imigrantes II #10 Qualificar a imigração é muito melhor do que reprimir #11 A negociação intercultural como vantagem competitiva para imigrantes |
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